Um ônibus rebocado pelo Fantástico revela um escândalo. Ele é antigo. Não está em condições de fazer viagens longas.
Mesmo assim, seria fácil conseguir uma autorização judicial para que circulasse livremente, de São Paulo ao Piauí.
No centro dessa historia nebulosa, está uma empresa de ônibus que transporta milhares de passageiros e que, há seis meses, se envolveu em um acidente que matou 36 pessoas.
Como este ônibus veio parar em poder do Fantástico? E como se conseguem essas autorizações judiciais?
Nosso produtor simulou ser dono do ônibus, que tem 17 anos de uso.
Nem pintando, deu para disfarçar os problemas.
“Um ônibus com tecnologia ultrapassada. Não é um ônibus recomendável para uma viagem de longa distância”, afirma Jùlio Cesar de Zanbom, chefe da divisão de fiscalização de trânsito da PRF.
Ligamos no escritório da empresa Transporte Coletivo Brasil, em São Paulo, com uma pergunta: tem jeito de pôr esse veículo para transportar passageiros?
“Você procura o Santana”, diz uma atendente.
Santana é Ivonaldo Santana.
Marcamos um encontro na rodoviária da Barra Funda, na capital paulista.
Ele se apresenta como gerente da empresa, também chamada de TCB, Transacreana ou Transbrasil.
Nosso produtor mostra as fotos do ônibus.
“O que vêm de pessoas pedir para rodar. Faz fila. Hoje, estamos com 350 carros. Eu sou gerente da empresa”,diz o suposto gerente da Transbrasil.
Como a Transbrasil não tem autorização dos órgãos que regulamentam o transporte de passageiros, ela entrou na Justiça para tentar ter o direito de fazer viagens de um estado para outro.
Em 2009, a empresa conseguiu uma liminar, que é uma autorização judicial provisória.
Foi concedida pelo desembargador Daniel Paes Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da primeira região, em Brasília.
A decisão autoriza a empresa a transportar passageiros por cinco linhas, que cruzam o país.
Ivonaldo Santana oferece duas opções. Pagando R$ 7 mil, receberíamos uma cópia da liminar e poderíamos pegar passageiros em pontos clandestinos, no meio da rua.
“Só para colocar o carro na empresa Transbrasil, você já gasta R$ 7 mil. Tudo que você precisa, a gente fornece. Como se fosse a empresa passar para você uma autorização para você rodar”, explica.
O que ele quer vender não poderia ser transferido para ninguém. Deveria beneficiar só a empresa.
E para sair de uma rodoviária, fica ainda mais caro.
“Na rodoviária, nós estamos cobrando R$ 10 mil por carro. Cada carro”, afirma.
Para participar desse comércio proibido, que ameaça a vida dos passageiros, tem mais um passo. É preciso fazer um contrato. Como se a Transbrasil estivesse alugando o ônibus e sendo responsável por ele. Mas, na prática...
“Uma coisa você tem colocar na sua cabeça: o negocio é seu. O negócio é seu”, garante.
“A liminar é dada para uma empresa. É essa empresa que tem que operar.A liminar não é objeto de negociação. Isso é um absurdo. Isso é uma ilegalidade”, diz Sônia Hadad, superintendente de serviços de transporte de passageiros (ANTT).
No estado de São Paulo, os ônibus da Transbrasil só têm autorização pra começar as viagens a partir de Cubatão, mas, na rodoviária da cidade, o guichê deles está fechado.
“Essa firma não está funcionando faz tempo”, diz uma funcionária.
Descobrimos que a Transbrasil tem guichê e ônibus começando a viagem da rodoviária do Tietê, na capital.
“O ponto inicial dessa liminar que foi dada é a cidade de Cubatão. Não poderia em hipótese nenhuma, iniciar a viagem, de São Paulo”, destaca Sônia Hadad.
E se o nosso ônibus for parado pela fiscalização? O homem que se apresenta como gerente da Transbrasil diz que entrega uma pasta. Que tem um nome curioso: o kit liminar.
“Você só vai viajar com essa pasta na sua mão. A cópia da liminar. Vai tudo. Uniforme, gravata, crachá. A fiscalização parou você na estrada, você apresenta todos os documentos que vamos te fornecer”, explica ???
“Totalmente ilegal. Documentos que vão induzir a fiscalização a deixar essas empresas trafegarem livremente”, aponta Ruvenal Farias, inspetor da Polícia Rodoviária Federal.
Na primeira quinzena de maio, a Polícia Rodoviária Federal fez uma operação de combate ao transporte irregular de passageiros, na Bahia.
Ao todo, 63 veículos foram apreendidos. E 23 deles andavam irregularmente com a liminar da Transbrasil.
Sem saber que era gravado, o dono de um ônibus confirma o esquema:
“Você compra a liminar para poder rodar com o nome deles. Na verdade, você continua com o ônibus no seu nome. A gente paga R$ 5 mil ao ano. Nós pagamos para trabalhar”.
Após conferir o kit liminar e os crachás, uma constatação: nenhum dos motoristas parados pela polícia é funcionário da Transbrasil.
“Oficialmente o senhor não tem registro?”, pergunta um policial. “Registro, não. Carteira assinada? Não”, responde o suposto funcionário.
Nos crachás, consta que os motoristas fizeram exame médico e que estão aptos a dirigir. Mas um deles admite que não fez nenhum exame:
“Eu não fiz nenhum exame, já me deram o crachá pronto”.
O inspetor Ruvenal Farias diz que o passageiro que viaja com uma empresa dessas não tem nenhuma garantia. “Exemplo disso é o acidente de dezembro que ocorreu na BR 116, na Bahia”, acrescenta ele.
Foi assim: um ônibus que rodava com a liminar da Transbrasil levava 42 passageiros. A grande maioria, trabalhadores rurais.
Perto de brejões, Bahia, o veículo começou a ultrapassar um caminhão-baú em local permitido.
No sentido contrário, vinha uma carreta que transportava gesso e, atrás dela, um outro ônibus, equipado com câmeras que registraram tudo.
A carreta anda no acostamento e na contramão.
Depois de uma curva, a carreta bateu no ônibus onde estavam os trabalhadores rurais.
Nas imagens, dá para ver o caminhão-baú tombando.
Ao todo, 36 pessoas morreram: 33 cortadores de cana, os dois motoristas e o agente de viagem do ônibus que rodava com a liminar da Transbrasil.
O Fantástico esteve em Buíque, Pernambuco, terra natal da maioria das vítimas. Dona Marta perdeu 4 filhos.
“Deus me deu coragem que eu vi meus 4 filhos, todos os 4, eu vi dentro do caixão”, lamenta Marta Maria da Silva.
Também localizamos três sobreviventes.
Jorge Batista da Silva conta que entrou no ônibus achando que ele estava legalizado e diz que até hoje a empresa não o ajudou em nada.
Um dos motoristas do ônibus era José da Silva, 33 anos. Ele recebia R$ 500 por viagem.
“Ele não era funcionário da Transbrasil, mas da JM, lá de Buique, que é o dono do ônibus. No dia do acidente ele não estava registrado”, conta a viúva Maria Rejane Lopes.
A viúva não sabe se vai conseguir receber a pensão do INSS.
“Ele sustentava eu e minha filha. Eu lhe pergunto: eu vou fazer o quê da minha vida agora? Que as pessoas que erraram que arquem com as consequências”, torce.
Procuramos o dono da JM Buíque. Por telefone, José Milton dos Santos reconheceu que pagou à Transbrasil para ter a liminar. E disse que o seguro das 36 vítimas fatais do acidente será pago. Ele não informou o valor.
“Já foi pego na Bahia o documento, então está tudo ok”, diz.
E como será que é viajar em um ônibus que roda com liminar da Transbrasil?
Os produtores Bruno Tavares e Alexandre Dantas fizeram o teste.
Os ônibus da Transbrasil também começam a viagem da Rodoviária de Osasco, na grande São Paulo, o que a liminar não permite.
A empresa que administra o terminal e o do Tietê informou apenas que respeita as ordens judiciais.
É de Osasco que os produtores partem para Picos, no Piauí: uma viagem de 2,6 mil quilômetros.
O cheiro de urina é forte. Há fios elétricos expostos. E o ônibus roda como se fizesse a linha Cubatão-Fortaleza, uma das autorizadas pela Justiça.
Depois de 10 horas de viagem, o ônibus onde está nossa equipe simplesmente parou na estrada. A mangueira do óleo furou.
O ônibus volta para estrada, mas por apenas 10 minutos. Continua vazando óleo.
Uma hora depois, estourou uma mangueira e fica difícil usar o freio.
Com tantos problemas, a viagem, que deveria durar 39 horas, teve um atraso de quatro horas.
São dois motoristas. Um chegou a trabalhar 12 horas seguidas.
Em vários momentos, o ônibus andou acima do limite de velocidade.
Depois de 43 horas na estrada, o ônibus que a gente seguiu desde Osasco chegou ao destino final.
Chegamos em Oeiras, Piauí, na garagem da Sivi Tur, uma empresa de fretamento.
O ônibus e os motoristas são, na verdade, dessa firma, que usa a liminar da Transbrasil. O dono é Sivirino da Silva Filho.
Como a passagem que compramos era para Picos, e não Oeiras, o restante da viagem, de 80 quilômetros, será improvisado, de carro.
Depois de quase dois dias de viagem, finalmente chegamos ao nosso destino.
O Fantástico ligou várias vezes para Sivirino da Silva Filho, mas ele não nos atendeu.
Você viu no início desta reportagem: um produtor do Fantástico simulou uma negociação com um homem que se diz gerente da Transbrasil.
Ele diz que consegue pôr o ônibus no trajeto entre Osasco e o Piauí, justamente a rota em que nossos produtores viajaram.
“Tem um pessoal que já roda, já faz rodoviária. Faz Piauí”, diz o suposto gerente da Transbrasil.
E por que os ônibus circulam com adesivos diferentes?
“Transbrasil, rodoviária. TCB são os carros que não podem entrar em rodoviária. São aqueles carros meia boca”, explica.
Nosso produtor simula que vai concluir o negócio e trazer o dinheiro.
‘Fechou. Não tem problema. É só adesivar. Só colocar Transbrasil”, conclui o suposto gerente.
No Brás, centro de São Paulo, compramos os adesivos, sem nenhuma dificuldade.
Agora, estamos em Brasília, onde o ônibus que negociamos está parado.
O ônibus está pronto, com os adesivos das cores e do nome da empresa. Agora, é hora de ir atrás das explicações.
Como o ônibus não está em boas condições, usamos sempre um reboque.
A primeira pergunta: será que ele aguentaria fazer viagens semanais entre São Paulo e Piauí, como propôs o tal gerente da Tranbrasil?
“Não é um ônibus recomendável para uma viagem desse porte, dessa magnitude”, diz Jùlio Cesar de Matos Zanbom, chefe da divisão de fiscalização de trânsito da PRF.
Também fomos ao Tribunal Regional Federal da primeira região.
O desembargador que concedeu a liminar à Transbrasil, e que hoje é vice-presidente desse tribunal, preferiu não gravar entrevista.
Em nota, Daniel Paes Ribeiro disse que não tinha conhecimento do aluguel da liminar e classificou a prática como abjeta e indevida.
Segundo ele, a liminar tinha o objetivo de assegurar a continuidade da prestação do serviço de transporte rodoviário de passageiros.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) diz que já tinha alertado o desembargador sobre a venda da liminar.
“A ANNT informou, por meio da sua procuradoria, à Justiça sobre o ocorrido”, afirma Sônia Hadad.
O dono da Transbrasil já foi acusado de crimes como formação de quadrilha e estelionato.
Foi prefeito de Ouro Preto do Oeste, Rondônia, e teve o mandato cassado, em 2007, por usar o cargo em benefício da empresa dele.
Irandir Oliveira negou a participação na venda do kit liminar.
“Nenhum tipo de comercialização. O que existe é que nós arrendamos veículos para operar no nosso nome. Nós que administramos. Os funcionários, carros, manutenção, seguro, é tudo Transbrasil. Já denunciamos inclusive em várias delegacias, pedindo o apoio da polícia para investigar muitos ônibus que colocam o nome Transbrasil nos ônibus, ou TCB, e saem fazendo viagem pelo Brasil afora”, afirma.
Ele diz ainda que Ivonaldo Santana, que se apresentou como gerente, não é funcionário da Transbrasil.
“Tem que chamar a polícia e prender. É esse tipo de ações de alguns vigaristas que estão fazendo, principalmente ali na região de São Paulo”, acrescenta.
Procuramos Ivonaldo Santana, que não quis gravar entrevista.
Por telefone, continuou falando como funcionário da empresa, mas, agora, disse que não faz negociações ilegais:
“Nunca existiu isso aí. Inclusive nem tem como fazer parceria agora”.
“Nós estamos cobrando R$ 10 mil por carro. Cada carro. Eu sou gerente da empresa”, diz Ivonaldo no início da reportagem.
Segundo a ANNT, a Transbrasil já foi autuada mais de 5.500 vezes. As infrações chegam a R$ 16 milhões.
O desembargador que concedeu a liminar informou que vai pedir à Polícia Federal que investigue todas as denúncias apresentadas nessa reportagem.
“A empresa detentora da liminar certamente está ludibriando a Justiça e comercializando os efeitos de uma liminar que ela detém, colocando em risco a vida de muitas pessoas”, alerta o inspetor Ruvenal Farias.